Predador
(texto publicado primeiramente no site “Fábrica do Terror” - 21/07/2023)
Lá está ele!
Espreita-me no escuro, pela porta do quarto. Tem vestido o breu adornado de um sorriso cínico, enquanto arrasta os pés descalços e disformes pelo soalho flutuante na minha direção. Vem num ritmo de suspense mórbido. A distância é curta, mas sinto-a uma eternidade, e ele olha-me com vontade; tem uma fome de alma que amedronta o estar vivo. Aproxima-se. O sorriso revela-se cada vez mais ameaçador, o seu tamanho aumenta com a escuridão e com o frio que traz consigo. Sobe pelos pés da cama, numa vagarosa articulação de membros, primeiro o joelho direito, depois o esquerdo, faz um gatinhar furtivo, braços apoiados em mãos esguias com dedos compridos e ossudos, terminados em unhas amareladas pelo tempo, de pontas afiadas que cravam o colchão, cotovelos apontando para o teto. A cabeça e o corpo baixam numa posição de ataque felina. Avança.
O meu corpo mantém-se estático, imóvel. Não consigo mover músculo que me sustente e me faça reagir ao perigo. Não tenho som, não funciono! Não há voz capaz de gritar ou pedir auxílio. Forço o movimento, sacudo a inquietação, gesticulo o medo e afronta que tenho dentro, mas não há resposta voluntária do corpo. Petrifiquei!
Sinto o gelo do corpo dele a percorrer o meu, o cheiro pútrido… Está em cima de mim!
O peso asfixia-me, esmaga a minha caixa torácica. Encosta a cabeça ao meu pescoço e cheira-me, numa inspiração longa e profunda, a terminar com um rouco «aaah» de satisfação, quando liberta o que absorveu. Sobe os lábios azulados da morte ao meu ouvido. Oiço a pele a rasgar o sorriso malicioso, a respiração ofegante, enquanto diz:
— Agora, tu!
Petra Fernandes | Possessão | 22X18 cm | acrílico e guache sobre papel
Disponível no livro “Os Melhores Contos da Fábrica do Terror – Vol. 2” (comprar AQUI)