Homem Cinzento
Divaga pelas ruas cheia de vida, observa os detalhes. Estuda os horários de quem passa, onde vivem. Absorve tudo o que pode, o que consegue e ninguém dá por ele. Vestido sempre de cinzento, magro, de rosto cadavérico, olhos de um azul profundo e intenso. Deambula por ali, numa demência onde Deus faz dele discípulo e as alucinações tentam-no.
O dia some-se. A luz vai ficando cada vez mais difusa, as sombras no chão desaparecem e acendem-se as luzes dos candeeiros de rua. Aguarda até que uma das crianças que brinca por ali fique sozinha e aproxima-se:
- Olá pequeno. Com que brincas? - pergunta o homem de cinzento.
- Estou a construir uma cidade. - responde o menino que empurra pela a areia os camiões.
- És um belo construtor! - tentava ganhar confiança - Posso brincar contigo? Emprestas-me um carrinho?
Tenta fazer-se amigo, interessado na brincadeira. Conta histórias até o rapaz ficar mais tranquilo e aceitá-lo. Quando percebe que o menino baixou a guarda:
- Sabes… Tenho alguns carrinhos lá em casa, ninguém brinca com eles. - repara na reacção do pequeno e continua - Podem ser teus. Queres?
- Hmm, não sei. A minha mãe ensinou-me a não aceitar nada de estranhos - recuou.
- Mas já não somos estranhos, somos amigos. Não somos? Estamos a brincar juntos.
- Sim, estamos. - e calou-se.
- Então? Vá lá! - desfiou-o - Não me digas que não és capaz de ir comigo? E ganhar uma recompensa?
- Eu sou capaz! - reagiu com os olhos semicerrados e a testa franzida.
- Não esperava outra coisa do meu novo amigo. - incentivou-o sorrindo.
- Mas vamos rápido! A minha mãe está quase a chegar…
- Prometo. - estendeu a mão como prova da sua palavra, apertando a do menino - Será rápido.
Esfregou as mãos da sua consciência, satisfeito. Conseguiu.
Pegaram nos brinquedos e puseram-se a caminho.
O menino acusava algum cansaço e perguntava se faltava muito para chegar ao destino. Às vezes respondia-lhe, outras ficava tão absorto no que estava prestes a fazer, que não havia qualquer interação com a criança. Foram penetrando o bosque.
- A minha casa é já ali. - apontou para o emaranhado de árvores ao fundo de um longo caminho de terra batida que seguia perpendicular à estrada por onde caminhavam.
Sim. Havia uma casa ao longe. Uma cabana envelhecida pelo tempo que usava como refúgio. Era um esconderijo isolado o suficiente para conviver, sem julgamento, com os seus demónios e as suas actividades profanas. Ali guardava as ferramentas da tortura, da punição. Arquitectava em silêncio a execução metódica de mais uma cena macabra, durante o percurso que faltava até chegar à entrada.
- É mesmo aqui que vives? - perguntou o menino, estranhando o aspecto envelhecido da estrutura para onde o seu novo amigo o estava a encaminhar.
- É. Não te deixes impressionar pelo aspecto. Olha que é bastante acolhedora e os brinquedos estão lá dentro! - aqui, já não era possível esconder a ansiedade. O entusiasmo do nervoso miudinho no estômago.
Tirou do bolso um molho de chaves que usou para abrir um a um, os cadeados enferrujados, que mantinham seguro o conteúdo da cabana na sua ausência. Abriu a porta queixosa ao seu comando. Estava escuro, cheirava a mofo e a bafio. O ar era tão pesado que custava inalar.
Avançou. Com a mão direita por detrás das costas do pequeno, fê-lo avançar consigo cabana adentro. Atrás de si, fechou a porta com um baque que sobressaltou o menino. Trancou-a. Fez estremecer o pobre coitado, agora ainda mais nervoso por estar num espaço fechado e escuro com aquele homem com ar de avô que o fazia sentir medo. Já não era o seu amigo de à pouco. Era uma ameaça que se movimentava nas sombras, a preparar sabia lá ele o quê.
Ouviu-se um tilintar de copo. Um mexer de colher a misturar alguma coisa líquida. Aproximou-se vindo do breu e estendeu o braço, entregando um copo à criança.
- Toma. Bebe, vai fazer-te bem.
- Não quero! - recusou sem pensar nas consequências.
- Queres sim! Faz o que te digo. É para teu bem. - começava a ficar impaciente com a resistência do menino.
- Quero voltar para casa. A minha mãe já deve andar à minha procura. - tinha os olhos cheios de água.
- Só te levo depois de beberes. E é se queres levar os camiões que te prometi! - aliciou-o desta vez em tom de ameaça.
De uma forma inocente e sem maldade no gesto, o menino pegou no copo e bebeu até à última gota. Estava com sede o coitado. No fim, fez uma careta por causa do sabor amargo.
O tempo parecia não passar. A impaciência do raptor começava a notar-se no vaguear de passos que se iam apressando, de lá para cá, num vai e vem que enervava o soalho gasto. Aquela treta que tinha adicionado à água, nunca mais fazia efeito. E as vozes na sua cabeça iam ficando mais claras, mais exigentes, com urgência nos pedidos constantes. O menino começava a ficar zonzo, cambaleou até sentir o encosto do sofá velho, escondido na penumbra. Ainda assim, resistia e mantinha-se.
- Já podemos ir? Eu bebi… - foram as suas últimas palavras.
Bateu-lhe. Soou uma pancada seca e mortífera. Um golpe rápido, de um remo que agitou com a maior agilidade. Nem parecia ter cinquenta e cinco anos. Sorriu quando viu o corpo dormente cair inanimado. Finalmente!
Apoderou-se de um êxtase que o drogou. Agiu automaticamente, puxando a criança pelos braços até ao sofá mais à frente. Lançou-o sem cuidado. Caiu de bruços sobre as almofadas puídas. Pareciam gestos repetidos de quem já fez aquilo outras vezes. Tinha a excitação no rosto, os olhos brilhavam. Estava satisfeito. Mas quis ouvir mais um baque, para aumentar o prazer que sentia com a violência do golpe. Precisava disso. Voltou a bater-lhe: “Hmm… isso, outra. Mais outra pancada”.
Excitava-se com o som. Espancava a criança com pancadas seguidas de uma satisfação doentia. Estava ao rubro! Precisava vir-se, queria vir-se. Tirou a roupa do menino, ajeitou-o. Baixou as suas calças e… Saciou a sua vontade.
Os delírios atiçavam as suas acções. Deus falou consigo novamente e desta vez exigiu: “Come-o!”.
O desafio comandava-o. Sentia-se honrado e digno por cumprir as ordens superiores. Levantou-se. Com as calças na mão, procurou na bancada de madeira improvisada o que poderia servir para o corte. E pegou o cutelo. Voltou ao sofá onde jazia o corpo profanado. Aproximou-se e iniciou os golpes que iam esquartejando o pequeno corpo. Aí encontrou uma nova droga, novo êxtase. Um regozijo doente nos golpes certeiros do desmembramento. Incisões eficazes, dividiam em pedaços de carne e ossos tenros a criança ainda quente. Pegava nas postas mais pequenas e apertava entre dedos, sentindo a textura gelatinosa da carne vermelha e o sangue a escorrer pelas mãos. Vibrava com o cheiro. Havia um deleite, um sorriso sádico. Era tão suculenta, tão tenra!
Saboreou cada naco de carne rasgada pelos dentes esfomeados, mastigada com a vagarosa demência e o gozo de quem enche o estômago de júbilo.
Chupou os dedos quando terminou.
Este texto segue o AO 1945
“Albert Fish”, técnica mista, caneta de aparo e guache sobre papel, 11,5 cm X 11,5 cm, Maio de 2023
Este conto foi inspirado no criminoso Albert Fish (1870-1936), conhecido popularmente como “The Grey Man”, considerado um dos assassinos em série mais cruéis até hoje. Perpetrou crimes hediondos contra crianças, molestou, espancou e torturou algumas até à morte. Registadas, foram mais de cem. Praticou canibalismo.